Saturday, June 25, 2011

 

ESPERA


Somos sujeito e objecto da História.
  




A única luta que vale a pena travar é a luta pela paz.
A.   Camus
 


       Não nego desta vez as fontes e afirmo na prática a necessidade de montagem.
 
       A primeira porta conduz a uma casa pequena ladeada de assentos, com tecto de cortiça e paredes forradas de tosco mosaico. Na segunda porta, correspondente àquela, havia uma caveira entre dois ossos com este letreiro:




Ó TU MORTAL QUE ME VÊS
REFLECTE BEM COMO ESTOU
EU JÁ FUI O QUE TU ÉS
E TU SERÁS O QUE EU SOU
 
       À sua chegada ao convento pelas 9 horas da tarde do dia 21 de Setembro de 1810, Lord Wellington recusou o quarto que lhe fora destinado por ser o melhor da hospedaria e que tinha entretanto, ao anúncio da chegada dado no dia anterior pelo seu ajudante de campo, sido lavado e caiado. As razões que deu para a recusa foram a existência de uma única porta. Mandou-se logo lavar e enxugou-se à força de fogo. Logo em seguida foi ver e observar meticulosamente toda a serra e estrada até Mortágua. Todas as celas foram ocupadas pelos oficiais de estado-maior e os religiosos obrigados a dormir por onde podia ser, na igreja, sacristia, biblioteca e dispensa. Desde a entrada de Lord Wellington rompeu-se o círculo de clausura para todo o género de pessoas, coisa inédita desde a fundação do convento. Ordenou o general que não tocassem de noite os sinos. As matinas foram rezadas às 8 da tarde.
-          Descreva-nos o general!
-          Diga-nos: qual é o aspecto dele?
-          Queremos uma reportagem completa sobre a sua vida amorosa!
-          Ele aprecia poesia?
 
       Dedos seguros e serenos pousam-me sobre o ombro e oiço assim: “O que é belo?” Sinto já o cheiro do charuto, volto-me a sorrir para trás e Brecht continua: “Belo é quando as pessoas resolvem dificuldades.” Sorrio de satisfação enquanto escrevo o que ele diz e já a outra mão se me veio pousar no outro ombro e sinto-me cheia de força: “Belo é, portanto, um agir.” Agora sorrimos os dois e eu sei que ele acaba de romper com as tradições contemplativas da estética ocidental. E ainda me vêm pedir que vos descreva Wellington? Não meço ou avalio as pessoas em termos de imagens, mas sim em termos de acção.

       O narrador, testemunha ocular dos acontecimentos daquele Verão quente de 1810, não podia aperceber-se senão de fragmentos da realidade. A descrição que nos faz é factual, fotográfica, mas ao mesmo tempo humanista, comovida, patética, em resumo, insuficiente, as perguntas dos repórteres absurdas.

(a continuar)

In: Modo Vocativo (1979)


Nota da autora:

Quando em Agosto de 1979 decidi escrever um livro sobre aquele espaço geográfico que considero minha terra natal, pelos laços afectivos profundos que a ele me ligam, o Luso e Buçaco, o meu pai, que era engenheiro silvicultor e natural do Luso, indicou-me um texto que eu devia ler. Eu queria incluir no meu livro um capítulo histórico sobre a Batalha do Buçaco, que conteve em Setembro de 1810 as Invasões Peninsulares, já que o espaço da Mata do Buçaco, onde morei com a minha família durante alguns anos, na casa com torreão mesmo ao lado do Palace Hotel, no coração da Mata, está cheio de memórias que testemunham dessa jornada histórica. O meu pai, que sabia os nomes, em português e em latim, de todas as árvores, plantas e flores, sabia também, para meu espanto, que existia na Biblioteca da Universidade de Coimbra um pequeno "Diário" de um frade que tinha assistido a todo esse episódio, desde a chegada de Lord Wellington ao Convento do Buçaco até ao final da Batalha de 27 de Setembro. Li fascinada o relato do frade, como se essa voz me chegasse viva, e resolvi dar-lhe voz no meu texto, através do processo de montagem, rendendo homenagem a este escritor quase anónimo, cuja voz e testemunho espero assim possam ecoar juntamente com a minha.