A Igreja de S. Paulo, mais conhecida como Igreja da Universidade ou Paulinerkirche de Leipzig, datava do séc. XIII (1231) e foi dinamitada em 1968
O escultor Klaus Schwabe – um dos três autores do baixo-relevo – observa a desmontagem do monumento “Aufbruch” (“Avanço”). O relevo em bronze encontra-se desde 2008 na Faculdade de Desporto (Campus Jahnallee) em Leipzig
Desde 2 de Dezembro de 2011, a nova face da Universidade na Praça de Augusto em Leipzig
Sobreposições
Tal como a memória ou um texto, a cidade tem
múltiplas sobreposições. Camada sobre camada que foi sendo sobreposta pelo tempo,
os projectos dos homens e o acaso, e que é possível ler num determinado
momento. Por exemplo, Leipzig em Novembro de 2009. Vinte anos depois da
“revolução pacífica”, os acontecimentos que anteciparam a Queda do Muro de Berlim.
Antes disso, quase quarenta anos de pertença à República Democrática Alemã e
ainda antes, a Segunda Grande Guerra e os tempos do nacional-socialismo. Uma
cidade de muitas memórias, de grandes mutações, de sacrifício e sofrimento,
espelhando afinal a história da Alemanha e até da Europa.
Percorro as ruas e registo, como num filme,
algumas dessas sobreposições que vemos no espaço e lemos no tempo. Perto da
estação de caminho-de-ferro, o exemplo talvez mais visual - a “caixa de lata” (“Blechbüchse”),
uma fachada de metal sem janelas. O edifício de 1964-66 de oito andares albergou
os maiores e mais modernos armazéns da RDA, hoje sob protecção patrimonial. Em
1914, no mesmo lugar estavam os armazéns Brühl e, um século antes, em 1813, a
casa onde nasceu Richard Wagner. A recuperação do edifício, hoje desactivado,
deverá respeitar a fachada dos anos sessenta, bem como conservar a placa de
bronze do escultor lípsio Fritz Zalisz, dos tempos dos armazéns Brühl,
recordando o local onde nasceu Wagner.
A rua mais
movimentada da cidade, palco de inúmeros cortejos e manifestações, centro
boémio e cena alternativa, é a “Karl-Liebknecht-Strasse”, onde viveu o fundador
do KPD (Partido Comunista da Alemanha), na casa que hoje tem o nº 69. De 1874 a
1933, chamou-se ”Südstrasse”. De 1933 a 18 de Maio de 1945, “Adolf-Hitler-Strasse”.
A 1 de Agosto de 1945, recebe o nome de “Karl-Liebknecht-Strasse”, que ainda hoje conserva. Depois da Queda do Muro, poderia ter passado a
chamar-se “Strasse des 17. Juni”, recordando as greves, demonstrações e
protestos de 1953, mas a população de Leipzig não quis, e chama hoje com ironia à rua
“Adolf-Südknecht-Str.”, ou com afecto simplesmente “Karli”.
Perto do “Gewandhaus” e da Universidade, havia nos
anos sessenta um enorme monte de entulho, em parte resultado das ruínas de uma
escola feminina, “St. Annen-Schule”, depois de destruída em 1943 por uma bomba
durante a Segunda Grande Guerra, que um grupo de estudantes – entre os quais a
actual chanceler alemã, Angela Merkel – em boa hora resolveu limpar, à procura
de instalações adequadas para um clube de estudantes. Nessa tarefa, descobriram ruínas da antiga
muralha da cidade, que hoje em dia albergam um café e restaurante, a “Moritzbastei”,
com o mesmo nome da muralha medieval. Fórum de encontros culturais, mais de
200.000 visitantes por ano gozam da atmosfera única das arcadas medievais que
albergam espectáculos de rock, jazz, teatro, filme ou leituras.
O último exemplo de sobreposição é também o mais
conturbado e radical: a “Paulinerkirche”. Consagrada em 1240 por monges
dominicanos, a história desta igreja confunde-se com a da Universidade de Leipzig,
a partir da sua fundação em 1409. Após a Reforma, é consagrada como igreja
universitária por Lutero, com a dupla função de espaço religioso e aula para
festividades académicas. Depois de modificações arquitectónicas importantes
durante o séc. XIX, a igreja sobrevive ao bombardeamento de 4 de Dezembro de
1943. Mas, depois do fim da guerra, o governo da RDA pensa que a praça principal
da cidade deveria ser o cartão de visita de uma metrópole socialista e decide demolir
a igreja, apesar dos protestos da população, e a igreja antiquíssima e intacta
é dinamitada a 30 de Maio de 1968. Seguiram-se mais protestos, nomeadamente por
ocasião do 3º Concurso Internacional de Bach. Em 1974, foi colocado em seu
lugar uma gigantesca escultura de bronze, intitulada “Aufbruch”, “Avanço”, representando
a cabeça de Marx. Este baixo-relevo encontra-se desde 2008, depois de aceso
debate, nos campi da antiga e famosa
Escola de Desporto da “Jahnallee”, juntamente com um texto explicativo. No
lugar da antiga “Paulinerkirche”, está a ser construído um compromisso entre
igreja e aula, com o nome de “Universitätskirche St. Pauli”. O projecto deverá
estar concluído em 2010.
A cidade é como um palimpsesto, com vários
registos, confirma a Professora Edvania Torres Aguiar, da Universidade de
Recife, investigadora convidada de Geografia Humana na Universidade de Leipzig,
a trabalhar num novo projecto, “Espaço público na cidade pós-socialista – o
caso de Leipzig”. Salienta que Leipzig é protagonista da História da Alemanha
porque nasce “de vanguarda”, do cruzamento de caminhos, das trocas comerciais,
o que vai dar origem a uma das suas principais referências como cidade das
feiras (“Leipziger Messen”). O facto de ser uma cidade livre (“Freistadt”), que
não era sede de nenhum imperador, repercute-se na sua cultura e tradição de
cidade independente.
Nem sempre são os habitantes de uma cidade aqueles
que melhor conhecem a sua História, por vezes é um olhar de fora que faz a
diferença – ninguém como esta Professora
brasileira para contar histórias de cada rua, de cada canto desta cidade, com o
entusiasmo de quem a cada dia redescobre e, narrando, recria um espaço.
Ana Maria Delgado
Novembro/Dezembro de 2009
Retomo hoje aqui um texto publicado na PnetLiteratura em 2009