Gracejos de uma noite de Verão
(...)
A realidade fica sempre aquém e além da ficção - quem me mandou imaginar antes de realmente cá vir? O que aconteceu de facto foi: neste cenário feérico estou, sem querer, no centro das atenções, sozinha no meio de pares de várias idades, isto não é sítio para onde se venha sem par, e vejo-me obrigada a desempenhar um papel (mas não desempenhamos todos afinal?), mesmo sem saber muito bem qual. Não percebem o que aqui faço sem companhia, senhora-criança, sem aliança, demasiado nova, parece-lhes, para tudo isto, uma espécie de irrealidade, um enigma para eles. Eles não sabem, nem podem mesmo saber, que vim para aqui, para a terra natal do meu pai, escrever sobre aquela que considero a minha terra, onde passei parte da infância e adolescência, fazendo ao mesmo tempo uma muito séria experiência de escrita e de vida. Nestes dias de fins de Setembro, dias que antecedem a festa da batalha do Buçaco, estou muito ocupada, porque no dia 27 de Setembro, o dia da batalha, o meu texto tem de estar pronto, foi este o plano que fiz, esta semana aqui no Palace é para isso e só para isso. De manhã, depois do pequeno-almoço, vou nadar e apanhar sol para a piscina do Luso, à tarde, depois do almoço, é para trabalhar em ritmo acelerado até ao jantar, e depois de jantar descanso, vejo um filme ou leio ou passeio aqui nos jardins.
Na mesa ao lado da minha oiço falar inglês, embora o acento predominante na sala seja o americano. Um jovem par de trinta e poucos anos resolve deitar-se a adivinhar a minha nacionalidade. Talvez pelo meu vestido branco pérola, com bastante roda, ela, que fala mais, decifra logo o enigma: espanhola. Mas ele não está convencido. Numa olhadela furtiva ela descobre a minha pulseira de Toledo e está triunfante, fala mais alto, estão mesmo ao meu lado, eu continuo a fazer de conta que não percebo nada.
Entretanto desenrola-se em prata e cristal impecavelmente o serviço de mesa, os empregados não parecem meros autómatos e tudo tem, apesar de tudo, a sua vida própria, quer isto dizer que Marienbad é uma estilização, embora muito útil, mas que fica, como disse acima, aquém e além da realidade. O mais engraçado de tudo é um pudim-sorvete gigante que anda a girar de mesa em mesa levado pelas mãos dos empregados de mesa em bandejas de prata e de repente, de ver tantos pudins iguaizinhos, só se pode imaginar que subitamente tudo gira às avessas em Marienbad e eles atiram com os pudins-sorvete à cara dos hóspedes e riem-se deles, comigo a fazer-lhes companhia, é claro, neste momento estou já a rir-me entre pedaços de pudim-sorvete do lado deles. A vizinha da mesa ao lado tem a cara coberta de sorvete e está fria, fria, porque eu dei-lhe sem querer uma pista falsa: quando me trouxeram a lista - estava eu a pensar no plano de escrita para a tarde - escolhi absolutamente às cegas, de propósito. Calhou-lhe na roleta uma falsa sorte grande, quando o empregado me traz uma tortilha, é o auge, grita vitoriosa ao companheiro: Vês como tinha razão, é mesmo espanhola! (Não será provavelmente o melhor raciocínio, uma espanhola não ia pedir uma tortilha num Palace internacional de cinco estrelas no estrangeiro). Ele está envergonhado, eu continuo a manter a serenidade, apesar de uma imensa vontade de rir. Os restantes fragmentos de conversa são, quase invariavelmente, comentários sobre a comida, tão requintada que não me surpreende que se torne o tema predominante de conversa na sala de jantar.
Logo que posso, passo à sala de televisão para ver as notícias. Aí, alguém me oferece um cigarro, que recuso (não fumo, na verdade, apesar de várias tentativas). Na televisão mostram um filme sobre Disraeli, oferecem-me um brande, que também não aceito, e declino ainda um convite para sair. Depois, mais alguém entra na sala - ou teria lá estado sempre, ao fundo, sem eu reparar - e fica até ao fim do filme, na sala já só estamos os dois, mas não trocamos palavra. Ele não diz nada, só está. E eu estou em fase de esfinge. Nada posso dizer sobre o meu plano de escrita experimental, que é realmente uma experiência dupla, de escrita e de vida. Certas coisas não se podem explicar, apenas compreender em simpatia, ou não compreender de todo - e ficar para sempre de fora da experiência.
Agora tu decides onde está a ficção e onde a realidade, e como é que as coisas se vão desenrolar amanhã.
(...)
Modo Vocativo (1979)
Créditos da imagem: http://www.hoteis.pt/