Tuesday, October 23, 2012

 A janela de canto, à maneira de prefácio de um romance por escrever, ou o outro lado da solidão

 
 
 
 
 
Sou curiosa como os gatos e gosto desta minha janela de canto, que lembra a janela do conto de E. T. A. Hoffmann. Mas a minha é menos citadina que essa outra, embora situada bem perto do centro da cidade. Esta não é uma janela da qual me possa debruçar desiquilibrando a relação estabelecida entre interior e exterior. É antes uma janela como a cabina do piloto num avião - o arquitecto que desenhou esta casa substituiu a parte intermédia da parede da cozinha por um vidro panorâmico, e enquanto aí trabalho vou olhando lá para fora. A comparação com a aeronave é apropriada, pois muito embora estejamos quietos e tranquilos em nossas casas, a verdade é que giramos com o nosso planeta em redor do Sol descrevendo uma elipse a uma velocidade de 30 km por segundo, velocidade essa quase cem vezes superior à do som, ao mesmo tempo que acompanhamos com velocidade semelhante a rotação da Terra em volta do seu eixo, tudo isto com a sensação de estarmos parados.


A janela dá para a entrada de um parque, por sua vez situado nas imediações de um jardim botânico, e é movimentada de dia e sossegada à noite. Na Primavera e Verão quase só vejo o verde das folhas das árvores que me fazem de cortina, e o doirado que reflectem da luz do sol, ocultando quase por inteiro a vista sobre o vaivém de quem entra e sai do parque. No Outono e Inverno os ramos vão ficando despidos e depois nus, em breve se recortam em negro no cinzento dos dias, até que acabam por ficar brancos quando a neve chega, e posso então ver com maior nitidez as pessoas que vêm aqui passear. Vejo o mudar das estações desta janela, pouco a pouco dia após dia e no momento imperceptível da mudança, decisivo e difícil de detectar, porque é constante e vai simplesmente acontecendo, se estivermos bem atentos ao respirar das folhas e à conspiração das flores, ao rumorejar das gotas de água nas nuvens e à enigmática preparação dos cristais de neve, tão diferentes todos uns dos outros - embora nós humanos pouco costumemos reparar nessas coisas que tão silenciosamente nos rodeiam. Talvez o cinema, arte do movimento, tivesse a capacidade de mostrar o invisível. Mas quando se trata do momento da transformação, creio que nem o cineasta mais atento seria capaz de o dar a ver. Provavelmente porque, mesmo no coração da mudança, o registo exacto do instante em que as coisas mudam teria de pertencer a alguma espécie de eterna suspensão do tempo, de tão lenta a transformação. Pasmo ininterruptamente perante o mistério da vida, que se desenrola diante dos nossos olhos sem que, a maior parte das vezes, sejamos capazes de a ver.
 
 
Muitas vezes tenho pensado em como seria imaginar histórias como fez E. T. A. Hoffmann nos seus contos fantásticos - mas logo a fantasmagoria do real me invade e fico momentos infindáveis a reflectir sobre o mistério das coisas, num encantamento feito de respeito e cumplicidade.


 
(Leipzig, 2011)


Música de Robert Schumann, compassos iniciais da Kreisleriana op. 16, "2. Sehr innig und nicht zu rasch / Con molta espressione, non troppo presto", na interpretação de Martha Argerich, sobre som-ambiente
 
 
 

Janela de Leipzig que imaginei poderia bem ter sido o modelo da janela do conto de E. T. A. Hoffmann ("Des Vetters Eckfenster")
 

Saturday, September 29, 2012


Receita para o sonho


Diz-me o que me acontece.

Sonho lucidamente
com mil realidades
com os pés na terra.
Parto para mil viagens,
universos e galáxias,
busco, procuro, exploro,
levanto voo, penso, sinto,
estou a aprender a sonhar
com os pés na terra.

Leve borboleta esvoaço
em raízes mil e elásticas.

Que maravilha!


Sistro (1979)


Foto de Luis Mariano Gonzáles, "Con los pies en el cielo"
www.flickr.com/unaciertamirada

Luis Mariano Gonzáles, "La vida después del sueño", I e II:














Nota da autora: actualizo hoje o post deste blogue do dia 3 de Novembro de 2010 com mais duas belíssimas fotos de Luis Mariano Gonzáles, "La vida después del sueño", I e II.


Saturday, August 11, 2012

3.xii.95

Guardian Angel, are you still there? Everything's so quiet now. Look, this is not what I want to do. I'm so much better at writing-composing my UNO. Maybe all that I've been writing seems dull to you, and it surely seems dull and fading away to me, since it is all in the past! But how can I get there? Of course, I've still got my UNO, and I've got you, it's just that I can't hear you now, although I know you're there. But I think I can guess what you are saying to me - if I make an effort and learn some more music, I'll be able to sing and then we'll be able to understand each other at a higher level and on a wider basis.

Keine Erinnerung der Dinge als abwesend. Keine Vergangenheit.

Oh, was that you, Guardian Angel?

Yes, I'm here. And I have a complete register of everything that happened in the world while you were writing your text - to prove it all true.


(Finha de Fuga - Flightline - Fluchtlinie. Projecto de filme-cantata a várias vozes)

Imagem: Paul Klee, Engel noch tastend


Saturday, March 31, 2012

 

Alvorecer





Agosto de 1992

O pôr-do-sol tinha estado púrpura e a cor ficou longo tempo a confundir-se com o azul-negro da noite, iluminada pelo quarto crescente. Agora, às seis da manhã, um rosado intenso do lado norte precipitava-se no negro-verde das árvores. Por cima do rosa, muito gradualmente, aparecia um azul escuro que parecia querer clarear à medida que se misturava com a cor mais clara. Previam perto de quarenta graus centígrados - o dia ia estar muito quente e, mais uma vez, era outro dia. Durante algum tempo o rosado da noite parecia iluminar-se de um branco que não era já o da noite de luar. Quedou-se o rosa a fundir-se cada vez mais no azul claro acinzentado, enquanto o rosa suave continuava a crescer de por trás dos montes de verdes ainda muito escuros. Mais uns minutos - tudo isto parecia uma miniatura da vida, as coisas aconteciam por vezes num abrir e fechar de olhos - e o rosa tinha desaparecido por completo, para se transformar na luz-luz pura, sem cor, e nos pinhais havia pequenas nuvens de brumas brancas. Apaguei a luz eléctrica, já não era necessária, estava agora a mais. O dia estava a nascer.

Linha de Fuga, Projecto de filme-cantata a várias vozes