A janela de canto, à maneira de prefácio de um romance por escrever, ou o outro lado da solidão
Sou curiosa como os gatos e gosto desta minha janela de canto, que lembra a janela do conto de E. T. A. Hoffmann. Mas a minha é menos citadina que essa outra, embora situada bem perto do centro da cidade. Esta não é uma janela da qual me possa debruçar desiquilibrando a relação estabelecida entre interior e exterior. É antes uma janela como a cabina do piloto num avião - o arquitecto que desenhou esta casa substituiu a parte intermédia da parede da cozinha por um vidro panorâmico, e enquanto aí trabalho vou olhando lá para fora. A comparação com a aeronave é apropriada, pois muito embora estejamos quietos e tranquilos em nossas casas, a verdade é que giramos com o nosso planeta em redor do Sol descrevendo uma elipse a uma velocidade de 30 km por segundo, velocidade essa quase cem vezes superior à do som, ao mesmo tempo que acompanhamos com velocidade semelhante a rotação da Terra em volta do seu eixo, tudo isto com a sensação de estarmos parados.
A janela dá para a entrada de um parque, por sua vez situado nas imediações de um jardim botânico, e é movimentada de dia e sossegada à noite. Na Primavera e Verão quase só vejo o verde das folhas das árvores que me fazem de cortina, e o doirado que reflectem da luz do sol, ocultando quase por inteiro a vista sobre o vaivém de quem entra e sai do parque. No Outono e Inverno os ramos vão ficando despidos e depois nus, em breve se recortam em negro no cinzento dos dias, até que acabam por ficar brancos quando a neve chega, e posso então ver com maior nitidez as pessoas que vêm aqui passear. Vejo o mudar das estações desta janela, pouco a pouco dia após dia e no momento imperceptível da mudança, decisivo e difícil de detectar, porque é constante e vai simplesmente acontecendo, se estivermos bem atentos ao respirar das folhas e à conspiração das flores, ao rumorejar das gotas de água nas nuvens e à enigmática preparação dos cristais de neve, tão diferentes todos uns dos outros - embora nós humanos pouco costumemos reparar nessas coisas que tão silenciosamente nos rodeiam. Talvez o cinema, arte do movimento, tivesse a capacidade de mostrar o invisível. Mas quando se trata do momento da transformação, creio que nem o cineasta mais atento seria capaz de o dar a ver. Provavelmente porque, mesmo no coração da mudança, o registo exacto do instante em que as coisas mudam teria de pertencer a alguma espécie de eterna suspensão do tempo, de tão lenta a transformação. Pasmo ininterruptamente perante o mistério da vida, que se desenrola diante dos nossos olhos sem que, a maior parte das vezes, sejamos capazes de a ver.
A janela dá para a entrada de um parque, por sua vez situado nas imediações de um jardim botânico, e é movimentada de dia e sossegada à noite. Na Primavera e Verão quase só vejo o verde das folhas das árvores que me fazem de cortina, e o doirado que reflectem da luz do sol, ocultando quase por inteiro a vista sobre o vaivém de quem entra e sai do parque. No Outono e Inverno os ramos vão ficando despidos e depois nus, em breve se recortam em negro no cinzento dos dias, até que acabam por ficar brancos quando a neve chega, e posso então ver com maior nitidez as pessoas que vêm aqui passear. Vejo o mudar das estações desta janela, pouco a pouco dia após dia e no momento imperceptível da mudança, decisivo e difícil de detectar, porque é constante e vai simplesmente acontecendo, se estivermos bem atentos ao respirar das folhas e à conspiração das flores, ao rumorejar das gotas de água nas nuvens e à enigmática preparação dos cristais de neve, tão diferentes todos uns dos outros - embora nós humanos pouco costumemos reparar nessas coisas que tão silenciosamente nos rodeiam. Talvez o cinema, arte do movimento, tivesse a capacidade de mostrar o invisível. Mas quando se trata do momento da transformação, creio que nem o cineasta mais atento seria capaz de o dar a ver. Provavelmente porque, mesmo no coração da mudança, o registo exacto do instante em que as coisas mudam teria de pertencer a alguma espécie de eterna suspensão do tempo, de tão lenta a transformação. Pasmo ininterruptamente perante o mistério da vida, que se desenrola diante dos nossos olhos sem que, a maior parte das vezes, sejamos capazes de a ver.
Muitas vezes tenho pensado em como seria imaginar histórias como fez E. T. A. Hoffmann nos seus contos fantásticos - mas logo a fantasmagoria do real me invade e fico momentos infindáveis a reflectir sobre o mistério das coisas, num encantamento feito de respeito e cumplicidade.
Música de Robert Schumann, compassos iniciais da Kreisleriana op. 16, "2. Sehr innig und nicht zu rasch / Con molta espressione, non troppo presto", na interpretação de Martha Argerich, sobre som-ambiente
Janela de Leipzig que imaginei poderia bem ter sido o modelo da janela do conto de E. T. A. Hoffmann ("Des Vetters Eckfenster")