Wednesday, January 1, 2014






O melhor ar da cidade


 
 



“I blow through here… and the music goes round and round… and it comes down here” (Danny Kaye, The Five Pennies)

       Não é nos parques, jardins botânicos ou bosques que se respira o melhor ar de uma cidade, mas sim... numa sala de concertos.  Talvez nem pensemos nisto, quando assistimos a um concerto e nos deleitamos com o sublime dos sons, mas toda essa “fantasmagoria” sonora depende, afinal, também  de coisas bem concretas. Tal como quando conversamos com alguém, e o entendimento depende de tantas coisas complexas como falarmos o mesmo idioma, termos referências culturais comuns, estarmos num momento mais ou menos sociável... Mesmo partilhando códigos de referência a comunicação é difícil e “a linguagem é fonte de mal-entendidos”, como escreveu Saint-Exupéry. Pode então desistir-se da comunicação, mas também o silêncio pode ser eloquente, ou de oiro. Seja como for, quando comunicamos oralmente não são só factores linguísticos e culturais, afectivos ou emocionais que estão em questão na comunicação, mas antes disso todo um processo físico de transmissão do som, sem o qual nem valeria a pena falar de toda a complexidade interpessoal dos processos de comunicação. Na verdade, o som em si nem existe como tal, são antes as ondas sonoras que transportam aos nossos ouvidos vibrações do ar que são captadas e amplificadas 180 vezes pelo nosso aparelho auditivo, até a informação chegar ao cérebro.

       Podia ser aqui ou noutra cidade da Alemanha ou do mundo, mas imaginemos que estamos a fazer uma visita guiada ao Gewandhaus em Leipzig. Não é pela sala grande que começamos, uma sala monumental de 1.900 lugares, a que preside um majestoso órgão de 6.638 tubos, encimado pela máxima que guia a orquestra, uma citação de Séneca, “Res severa (est) verum gaudium”, “A alegria autêntica é uma coisa séria”. Juntamente com esta imagem emblemática, uma outra se nos grava na memória, mais minimalista e pósmoderna, e é por aí que começa uma visita guiada ao Gewandhaus: a dos filtros de ar nas caves do edifício. São compartimentos repletos de maquinaria onde o ar exterior é cuidadosamente filtrado. Os filtros estão muito sujos, o ar atmosférico está muito poluído, apesar dos inúmeros e vastos espaços verdes que a cidade possui, quer no centro, quer em seu redor. Há, no quarto fechado onde estão os filtros, um filtro novo no chão para se poder comparar a sua cor imaculadamente branca com o castanho acinzentado dos filtros que estão em funcionamento. O ar tem de ser filtrado para evitar infiltrações de bactérias no circuito de ar condicionado, obtendo-se por este processo igualmente uma melhor qualidade sonora. Os instrumentos musicais, nomeadamente os pianos, são zelosamente guardados num compartimento fechado onde o ar é rigorosamente medido e regulado, e daí sobem num elevador directamente para a sala de concertos. Os concertistas preferem os pianos de marca Steinway, e são sensíveis à perda de qualidade sonora dos instrumentos após cinco anos de uso. Assim, os instrumentos com mais de cinco anos são vendidos em leilão. A acústica da sala de concertos é outra das grandes preocupações de quem projecta. Embora três engenheiros de acústica tenham trabalhado no projecto da sala grande de concertos do Gewandhaus, só se pode saber o resultado no final, e afirma quem sabe: a acústica de uma sala de concertos é uma pura questão de sorte! A propósito, para quem ainda aqui não esteve, a acústica da sala grande de concertos do terceiro Gewandhaus de Leipzig, concluído em 1981, é perfeita.

Ana Maria Delgado
Outubro de 2009
 
Nota: recuperamos hoje neste blogue um texto que publiquei como colaboradora da PNET Literatura em 2009. Em baixo fica ainda a recordação do momento musical evocado em epígrafe ao texto, do filme musical The Five Pennies (1959), com Danny Kaye e Susan Gordon: