Monday, December 12, 2011


Espera


(...)

       O Lord quando estava para partir mandou dizer ao prelado que queria pagar o que tinha gasto. Ele respondeu que não queria mais do que a paz do reino.


       Este convento perdeu muito com a tropa. Desapareceu quase tudo o que se havia dado para as camas e mesas dos oficiais. Nada do que era bom ficou. Além do estrago que fizeram os franceses, perdemos quase todo o milho que ainda estava verde; grande quantidade de cedros foram quebrados; queimaram quanta lenha quiseram por toda esta mata.

       O Tratado de 1810 abre à Inglaterra os portos brasileiros; para Lord Wellington os melhores artistas e artífices portugueses desenham e executam uma preciosíssima baixela de prata. Cinco anos depois o Lord ganha contra Napoleão a decisiva batalha de Waterloo. Os nossos pequenos heróis anónimos continuam a passar fome.

       A testemunha ocular é humanista, comovida, patética. Não somos só objecto da História, mas também o somos.

       Pelas 8 horas da manhã saí do convento a ver o fogo: indo entrando pela porta que está ao pé do tanque, encontrei ali um paisano a chorar; perguntei-lhe que tinha? Respondeu-me, quase sem articular palavra: pois não vê aquilo? O quê? Disse eu. Acrescentou ele: aqueles franceses feridos que ali estão. Reparei logo para baixo, vi-os de tão miserável forma, que sem querer me principiaram logo a correr as lágrimas. Uns 4 ou 5 estavam cortados pela cinta e tão esgotados de sangue que tremiam de frio. Mas um deles, que causava mais ternura, tinha o rosto atravessado de um a outro lado por uma bala que lhe passou por entre os queixos: o sangue saía-lhe pela boca, e tinha já uma grande porção dele coalhado pendente dos beiços... Este nem sequer uma palavra podia dar.

       E se pudesse, o que saberia dizer das razões que o levaram a travar aquela batalha, a participar naquela luta? Somos objecto uns dos outros, às vezes...

       Em cima do obelisco, pirâmide quadrangular feita de uma só pedra de seis metros de altura, brilha uma estrela de cristal, de oito raios facetados.

       O Homem há-de ser sujeito da História. E para mim, a estrela, um desejo, um tempo de espera.

Modo Vocativo  (1979)

Friday, October 14, 2011


Espera


(...)

       O general Freirion e o general Eble, convencidos da grande vantagem das posição dos aliados, também aconselharam a Massena que, em vez de obrigar Wellington a abandonar-lhe a sua formidável posição por meio de uma batalha atacando o boi pelos paus, tratasse de tornear a montanha. Massena, obstinado no seu propósito, contentou-se em responder: Vós que sois do exército do Reno, vós outros que gostais de manobrar, é a primeira vez que Wellington parece disposto a dar batalha; quero portanto aproveitar-me da ocasião... E tentava animar as tropas, dizendo: “Meus amigos, esta montanha é a chave de Lisboa, é preciso ganhá-la com a ponta das baionetas; esta vitória ainda, e repousaremos depois!”

       No dia 26 ficou reunido na raiz da serra do Buçaco todo o exército francês; e no mesmo dia também todas as tropas aliadas se postaram na montanha.

       Dia 26: Logo que se levantou, o general mandou sair para fora da mata todas as suas bagagens. Isto causou no convento um grande susto, tanto que alguns se aprontaram para fugir. Pelo meio-dia tornaram a voltar para o convento, e então é que mandou fazer o jantar. Todos ficaram algum tanto mais consolados.

       Segundo Wellington, a força do exército francês era de 72.000 homens para 49.175 do exército aliado, sendo 24.000 ingleses e 25.175 portugueses. Quanto aos números exactos, as opiniões variam. Mas que nos interessam os números exactos? E no entanto se aqui os pus foi porque achei importante. Qual a importância, o peso da realidade, dos factos reais, na ficção? E o que estou a escrever, será só ficção?

Dia 27 - o dia da batalha. Hoje levantou-se cedo o general e mandou logo sair as suas bagagens para fora da mata. Das 4 para as 5 da manhã, valendo-se os franceses de uma espessa névoa que de noite se tinha levantado por todo o vale que mediana entre um e outro exército, avançaram com grande ímpeto sobre a nossa tropa, principalmente nas duas estradas que vêm de Mortágua para Coimbra. A névoa permitia aos franceses avançar, conquistar terreno aos aliados, embora muito a custo, pois estavam numa posição de desvantagem quanto à colocação no terreno. Os batalhões portugueses e as tropas inglesas que disputavam o terreno passo a passo com os inimigos foram obrigados a retirar-se para o alto da montanha e reunir-se à linha de batalha dos aliados.

Aí os batalhões aliados se fortificaram e defenderam heroicamente por mais de três quartos de hora contra toda a força inimiga, que sofreu uma perda considerável até que, vencidos pelo número superior, largaram esta posição e continuaram (disputando o terreno) a retirar-se até que se reuniram à sua linha. Esta, com um sangue-frio e firmeza digna de admiração, esperou o inimigo até à distância de cinquenta passos, para começar um fogo de filas tão bem sustentado que, junto com a metralha da sua artilharia, num momento as duas colunas francesas foram desordenadas e postas em completa derrota, e sem perder um momento fizeram meia volta, e desceram a montanha mais depressa do que a tinham subido, abandonando os seus feridos. Ao segundo ataque, os franceses acharam tal resistência, que deixaram só ali 4.500 soldados mortos e 3.000 feridos, cedendo ao valor das tropas aliadas, que com uma pequena perda inutilizaram a violência do ataque dos franceses.
                                                                                  
       Massena, vendo que fora a sua suposta queda para profeta que lhe preparara a queda, convoca o seu estado-maior e decide finalmente tornear o obstáculo.

       Wellington, por seu lado, percebendo o movimento do exército francês, ordena logo uma bem ordenada retirada. Há quem diga que ele não soube tirar todas as vantagens da vitória e, por falta de confiança nas tropas portuguesas, não aniquilou de vez o inimigo. O certo é que se dirigiu para as formidáveis linhas de Torres Vedras, barreira invencível diante da qual o inimigo se quedou estupefacto, vendo impotentes todos os seus esforços.

       Mais uma vez afirmo a necessidade de montagem. Havia vozes que procurei, vozes desconhecidas, escondidas, murmúrios semi-silenciosos em jeito vocativo. Tive de os escrever aqui. Ia para pedir desculpa, mas eles estão a acenar-me que não peça nada, que eles é que não me perdoavam não ter dado volume às suas vozes por descobrir.
 
    
(a continuar)


Modo Vocativo (1979)

Sunday, September 18, 2011


Espera

(...)

       Os franceses, mais arreliados do que propriamente afectados no físico ou no moral, não perdoavam a estes pequenos agentes da História: torturavam-nos até à exaustão, assassinavam-nos barbaramente. Estes portugueses não deixam de ser, à sua maneira, sujeito e objecto da História. A História não é só o Grande Mecanismo que tritura seres humanos, a escada que todos sobem para encontrar no cimo, ao mesmo tempo que a glória efémera, o abismo. A História não é a Roda da Fortuna que tão depressa eleva os homens como os lança e esmaga num círculo de absurdo. Não. A História não é isso, porque ela é escrita – com sangue e sofrimento e erros e coragem e inteligência – pelos homens. Embora muitas vezes pareça absurda. Não é a História que é absurda. É ao próprio ser humano que devemos ir procurar as contradições – a ele, na sua interacção com os outros homens, com a natureza, e consigo mesmo.

       Massena avança e Wellington, que tem enviados seus para lhe espiarem os movimentos, vê o inimigo aproximar-se da ratoeira e cada vez se sente mais seguro e mais receoso. Nos dias 23 e 24 ouve-se já muito fogo nas localidades próximas, anunciando a vizinhança do inimigo. Os oficiais ingleses, nomeadamente o general, observam da Porta de Sula o espectáculo que dali se divisa – muitas casas a arder – e no rosto lê-se-lhe grande tristeza. O general não podia fazer nada, não podia acudir-lhes, a única maneira de lhes acudir era estar ali quieto, a preparar-se para a acção – mas só quando fosse a altura. No dia 24 Lord Wellington mandou abrir a Porta da Rainha, que estava tapada com pedra, por estar mais próxima da estrada. Com outras duas que, por motivos tácticos, mandou abrir, a mata ganhou mais três portas.

       No dia 25 todo o exército francês estava em movimento e veio acampar em Tondela e cercanias. Entre 25 e 26 estão muito próximos das tropas aliadas, nas vizinhanças de Moura e Sula. Os aliados põem o seu exército em linha por todo o cume da serra, da qual a mata é o centro. Fazem-se baterias por todos os montes. Os regimentos que ainda estavam pelos pinhais de Moura e Sula recuaram, por estarem muito próximos do inimigo.


       Participam então a Massena que os aliados se opõem à passagem da montanha com forças consideráveis. Massena pergunta ao general Pamplona se julga que os aliados vão oferecer batalha, ao que este responde afirmativamente. Diz então Massena, convencidíssimo e em tom de oráculo: “Eu não me persuado que lord Wellington se arrisque a perder a sua reputação; mas se o faz, je le tiens; demain nous finirons la conquête du Portugal, et en peu de jours je noyerai le léopard.”


       Antes de resolver atacar a posição, Massena convoca no dia 26 o marechal Ney, o general Regnier e o general Junot para os ouvir e conferenciar com eles acerca do que conviria fazer. Ney opinou que se não atacasse a posição no dia seguinte – bem calculava ele que durante a noite se reuniria todo o exército anglo-luso e que no dia seguinte teriam os franceses de arcar com todas as forças aliadas. Regnier e Junot seguiram o parecer de Ney.


       Disse então Massena:
-          Eh bien, que faut-il faire ?
-          Prendre position à Viseo, respondeu Ney, ou bien retourner sur nos pas à Almeida pour contenir l’Espagne, et écrire à Paris que nous n’avons pas assez de forces pour faire la conquête du Portugal.


       Massena, sob o signo da hybris mais uma vez, novamente julgou mal a situação; pensou que o fim de Ney era desviá-lo do combate para o privar da glória de conquistar o reino e torná-lo assim mal visto aos olhos de Napoleão. A resposta de Ney não casava com a sua habitual intrepidez e era até, bem vistas as coisas, inadmissível. Mas a desconfiança de Massena em relação às supostas razões de Ney levaram-no, por espírito de contradição, a desprezar o que teria sido acertado: tornear a posição, evitar o obstáculo. Ordenou então que no dia seguinte se atacasse a serra, dizendo: Je ne crois là que l’arrière-garde ennemie; si toujours l’armée s’y trouve, tant mieux, le bonheur de l’enfant chéri de la victoire ne l’abbandonnera pas !

       Do que Massena se esqueceu foi de que os riscos não se podem correr às cegas, tem que se olhar o real de frente e tentar captar todas as suas potencialidades.

       Somos sujeito e objecto da História.


       Na sua cela das duas portas, Wellington marcha de um lado para o outro.

 
(a continuar)

Modo Vocativo (1979)


 
Imagem: Palace Hotel do Buçaco, azulejos do hall do hotel, "Lord Wellington", in:

Friday, July 29, 2011







Espera






(...)

       Napoleão chamava a Massena “o filho querido da vitória”. Foi ele o terceiro enviado de Napoleão para conquistar Portugal, depois de Junot em 1807 e de Soult em 1809, com um grande exército para de novo invadir Portugal. Massena transpõe a nossa fronteira em Agosto de 1810, trazendo consigo a fama de grandes feitos militares, generais experientes e tropas numerosas, aguerridas, valentes, contrastando com os nossos soldados, que eram em menor número, grande parte recrutas que nunca tinham enfrentado o inimigo.

       Qual foi então o erro, o acaso, a circunstância que fez com que Massena que vinha, segundo a linguagem soberba de Napoleão, arrojar Wellington para o Oceano, tivesse de se reconhecer vencido e evacuar o país depois da derrota militar e moral?

       Dezassete dias fora o tempo calculado por Massena para a conquista de Portugal e foi para esse período de tempo que ordenou aos diversos corpos do seu exército que fizessem colheitas e se provessem de víveres. A 20 de Setembro Massena encontra Viseu deserta, vendo assim transtornados os seus planos, pois contara com a ajuda do povo português para prosseguir com facilidade nas suas operações. Estava Massena em erro. Portugal, de uma a outra extremidade do reino, logo deixara excitar o seu espírito nacional em corrente eléctrica. À medida que avançava em terras lusitanas foi Massena tomando contacto com este facto: os camponeses, bem recordados das anteriores passagens dos franceses, com a memória fresca das atrocidades, assaltos, devastações, afrontas de que as suas gentes e terras tinham sido vítimas, armaram-lhes uma guerra de guerrilha onde valia mais a imaginação, a vontade, a raiva contida e surda, a coragem, do que os recursos ou o senso comum. Eram as vozes dos filhos e parentes assassinados, os gritos angustiados das mulheres, irmãs, filhas, noivas, amantes que os atormentavam, pois muito diversos foram os vestígios deixados pelos franceses durante as Invasões Peninsulares. Era à noite que atacavam, fazendo rolar enormes pedregulhos pelas encostas abaixo e disparando tiros de caçadeira. Para eles era isso a realidade e não percebiam nada das subtilezas que associavam as Invasões Francesas ao espírito progressista da Revolução. Estes montanheses destemidos acabavam por conseguir separar as divisões francesas umas das outras e criavam uma situação de confusão por toda a linha de marcha. Não davam trégua ao inimigo odiado, não lhes deixavam um segundo de descanso.

     No dia 22 de Setembro a serra continua a encher-se de tropa seguindo as ordens de Lord Wellington. O general, por todo o tempo que ali esteve, levantava-se pelas 5 da manhã, pelas 7 saía a rever o campo e o exército e pelas 4 da tarde é que se recolhia e pelas 5 jantava.

       Era por essa hora que o Duque de Ferro, homem de acção, melhor tinha de dar provas a si mesmo da força de vontade inflexível que todos reconheciam como a característica essencial do seu carácter. Excelente estratega, com uma prodigiosa habilidade mental matemática, com um poder de visão verdadeiramente notável e com nervos de aço, o general não podia deixar de se sentir enjaulado naqueles dias, e isto apesar das duas portas. É que ele tinha feito a sua aposta no real, tinha-se visto obrigado a fazer um plano mental que não sabia se ia ou não encaixar na realidade, porque isso não dependia só dele. Dependia, sobretudo, de Massena que o inimigo contornasse o obstáculo e se lançasse em direcção ao objectivo central – a conquista de Lisboa – ou viesse direito a ele dar-lhe luta. E então aí, já o general esfregava as mãos de contente, porque conhecia as suas tropas, bem como o ânimo das tropas portuguesas, e acima de tudo conhecia-se a si próprio, sentia-se e sabia-se capaz de os guiar à vitória sobre os invasores. É claro que havia o Tratado de 1810 que abria os portos brasileiros ao comércio inglês e o que poderia parecer à primeira vista uma libertação assumia afinal aspectos de uma nova dominação. Homem conservador, Wellington tinha uma aguda sensibilidade em relação ao fenómeno nacional e aquela causa, sentia-a já como sua. Só havia, para além da angústia de não poder prever com toda a segurança a decisão de Massena, uma coisa que perturbava fortemente o general, e era isto que o fazia andar de um lado para o outro na cela, a ele, homem de paciência mil vezes posta à prova e de sangue-frio: é que as coisas têm muitas facetas e estão em movimento, por isso é tão difícil analisá-las; mas, mais difícil ainda, há sempre uma ou mais facetas escondidas, porventura as mais importantes.
 
 
       Wellington pensa na sua cela e eu acompanho-o na sua concentração, tanto que o mesmo poderia dizer da minha escrita enquanto tentativa de análise do real.




(a continuar)

Modo Vocativo (1979)

Imagem: www.dukeofwell.blogspot.com

Saturday, June 25, 2011

 

ESPERA


Somos sujeito e objecto da História.
  




A única luta que vale a pena travar é a luta pela paz.
A.   Camus
 


       Não nego desta vez as fontes e afirmo na prática a necessidade de montagem.
 
       A primeira porta conduz a uma casa pequena ladeada de assentos, com tecto de cortiça e paredes forradas de tosco mosaico. Na segunda porta, correspondente àquela, havia uma caveira entre dois ossos com este letreiro:




Ó TU MORTAL QUE ME VÊS
REFLECTE BEM COMO ESTOU
EU JÁ FUI O QUE TU ÉS
E TU SERÁS O QUE EU SOU
 
       À sua chegada ao convento pelas 9 horas da tarde do dia 21 de Setembro de 1810, Lord Wellington recusou o quarto que lhe fora destinado por ser o melhor da hospedaria e que tinha entretanto, ao anúncio da chegada dado no dia anterior pelo seu ajudante de campo, sido lavado e caiado. As razões que deu para a recusa foram a existência de uma única porta. Mandou-se logo lavar e enxugou-se à força de fogo. Logo em seguida foi ver e observar meticulosamente toda a serra e estrada até Mortágua. Todas as celas foram ocupadas pelos oficiais de estado-maior e os religiosos obrigados a dormir por onde podia ser, na igreja, sacristia, biblioteca e dispensa. Desde a entrada de Lord Wellington rompeu-se o círculo de clausura para todo o género de pessoas, coisa inédita desde a fundação do convento. Ordenou o general que não tocassem de noite os sinos. As matinas foram rezadas às 8 da tarde.
-          Descreva-nos o general!
-          Diga-nos: qual é o aspecto dele?
-          Queremos uma reportagem completa sobre a sua vida amorosa!
-          Ele aprecia poesia?
 
       Dedos seguros e serenos pousam-me sobre o ombro e oiço assim: “O que é belo?” Sinto já o cheiro do charuto, volto-me a sorrir para trás e Brecht continua: “Belo é quando as pessoas resolvem dificuldades.” Sorrio de satisfação enquanto escrevo o que ele diz e já a outra mão se me veio pousar no outro ombro e sinto-me cheia de força: “Belo é, portanto, um agir.” Agora sorrimos os dois e eu sei que ele acaba de romper com as tradições contemplativas da estética ocidental. E ainda me vêm pedir que vos descreva Wellington? Não meço ou avalio as pessoas em termos de imagens, mas sim em termos de acção.

       O narrador, testemunha ocular dos acontecimentos daquele Verão quente de 1810, não podia aperceber-se senão de fragmentos da realidade. A descrição que nos faz é factual, fotográfica, mas ao mesmo tempo humanista, comovida, patética, em resumo, insuficiente, as perguntas dos repórteres absurdas.

(a continuar)

In: Modo Vocativo (1979)


Nota da autora:

Quando em Agosto de 1979 decidi escrever um livro sobre aquele espaço geográfico que considero minha terra natal, pelos laços afectivos profundos que a ele me ligam, o Luso e Buçaco, o meu pai, que era engenheiro silvicultor e natural do Luso, indicou-me um texto que eu devia ler. Eu queria incluir no meu livro um capítulo histórico sobre a Batalha do Buçaco, que conteve em Setembro de 1810 as Invasões Peninsulares, já que o espaço da Mata do Buçaco, onde morei com a minha família durante alguns anos, na casa com torreão mesmo ao lado do Palace Hotel, no coração da Mata, está cheio de memórias que testemunham dessa jornada histórica. O meu pai, que sabia os nomes, em português e em latim, de todas as árvores, plantas e flores, sabia também, para meu espanto, que existia na Biblioteca da Universidade de Coimbra um pequeno "Diário" de um frade que tinha assistido a todo esse episódio, desde a chegada de Lord Wellington ao Convento do Buçaco até ao final da Batalha de 27 de Setembro. Li fascinada o relato do frade, como se essa voz me chegasse viva, e resolvi dar-lhe voz no meu texto, através do processo de montagem, rendendo homenagem a este escritor quase anónimo, cuja voz e testemunho espero assim possam ecoar juntamente com a minha.

Monday, April 18, 2011





Birthday Wish






For birthday -
my mate told me -
I'd like to take
a ride on the
merry-go-round
before we are too old

So gladly we went
for a ride on the
merry-go-round
going round and a-round
joyfully reversing necessity
if only for a while
going back as we went forward
going forward as we went back
just going a-round

getting slightly dizzy
trying to keep our balance
holding on tight
enjoying this circling
endless ambiguity
a light breeze on our face
feeling like being free
everything demanding decision
as if suspended for the time being

Happy to be going a-round
for one more ride
on the merry-go-round
before we are too old
to go for a ride
on the merry-go-round


Imagem: Janet Kruskamp, Merry Go Round
http://www.janetkruskamp.com/




Paula Modersohn-Becker, Schützenfest mit Karussell I, ca 1904



Otto Modersohn, Schützenfest in Worpswede, 1904


Friday, April 1, 2011

Ducts
Saber adquirido - Duct significa conduta, canal, tubo. Para mim, significa passagem. Como a ponte. Também como na música de jazz (terceira fase, B, em AABA). Como na banda sonora do filme Brazil, da autoria de Michael Kamen:

"Hi there! I want to talk to you about ducts. The old ducts seemed old-fashioned, out of date? Central Services's new duct designs are now available in hundreds of different colours to suit your individual taste. Hurry now while stocks last - your nearest Central Services's show - design the colours to suit your demanding taste."


In: Linha de Fuga - Flightline - Fluchtlinie. Projecto para filme-cantata a várias vozes (1996)


Wednesday, February 2, 2011





A cor do tempo



Au fur et à mesure



Com exactidão talvez não soubesse dizer
o que teria vindo antes
mas é possível ter sido assim

Depois do texto escrito
quis dar um título
ao que parecia
querer aquietar-se
como poema
(mas podia igualmente
ter sido a estrita
e silenciosa
contemplação da neve a cair)

E as palavras lentamente
começaram a aparecer sobre o papel,
como se fosse esse o seu lugar
desde sempre -
o que agora se podia ver com nitidez

Qual é a cor do tempo?
O branco, a cor da grande ausência,
como a neve que caiu esta noite
mais uma vez,
ou a cor das palavras que lenta
leve indelevelmente se revelam -
como se desde sempre lá tivessem estado -
na folha branca de papel por escrever?


Imagem: Paul Klee, Gedanken beim Schnee - Pensamentos contemplando a neve (1933)

Tuesday, February 1, 2011

Louis Aragon, "Fable du Miroir-Temps" - "Fábula do Espelho-Tempo" - "Fable of the Time-Mirror"
















Fable du Miroir-Temps


Le miroir dit An-Nadjdî ce jour-là que les jardiniers tentaient gagner le printemps de vitesse avec des oignons fleuris par avance à l'abri du verre ô Zaid le miroir est une machine immobile où se moud le grain d'une céréale inattendue

Le miroir dit An-Nadjî qu'il soit philosophie et c'est aux soldats qu'il incombe alors de le briser sur le pavis des mosquées

Le miroir s'il était un homme dit-il encore ah c'est là tout simplement conjecture d'épouvante

Et de tous les oiseaux sans doute le plus meurtrier



Dans le monde miroir ce qui est à droite est à gauche

et tu t'éloignes du miroir comme un baiser qui se rompt

Dans le monde miroir tout est double à la fois et rien n'est que solitaire

Dans le monde miroir il n'est amour que d'un seul et fausse en lui toute reciprocité d'apparence

Dans le monde miroir tout entre excepté le miroir



Si tu es le miroir d'une femme elle ne te voit pas

Si tu es le miroir de toi-même il n'y a porte que de toi sur le monde

Si tu es le miroir d'un miroir de quoi parlez vous ensemble

Mais si le miroir est du temps au lieu de l'étendue

Que se passe-t-il à son foyer



Et dit encore An-Nadjî ce jour-là pour l'enfant Zaid

Imagine seulement un miroir où le temps le temps reflète

Imagine l'image en lui qu'il t'apporte
Ce miroir où tu ne te vois point mais elle

Imagine le miroir-temps habité de l'image-amour


Peut-être peut-tu saisir le déchirement de celui qui voit l'avenir.



Louis Aragon, Le Fou d'Elsa (1963)

Imagem: Maria Helena Vieira da Silva, Au fur et à mesure (1963)





Fábula do Espelho-Tempo



O espelho disse An-Nadjî naquele dia em que os jardineiros procuravam ganhar à Primavera a corrida de velocidade com bolbos floridos antecipadamente ao abrigo do vidro ó Zaid o espelho é uma máquina imóvel onde se mói o grão de um cereal inesperado

O espelho disse An-Nadjdî que seja filosofia e é aos soldados que incumbe então quebrá-lo sobre o pavimento das mesquitas

O espelho se fosse um homem disse ele ainda ah isso é muito simplesmente conjectura de apavorar

E de todos os pássaros sem dúvida o mais mortífero



No mundo espelho o que está à direita está à esquerda

e tu afastas-te do espelho como um beijo que se rompe

No mundo espelho tudo é simultaneamente duplo e nada há que não seja apenas solitário

No mundo espelho não há amor senão de um só e falsa é nele toda a reciprocidade de aparência

No mundo espelho tudo entra excepto o espelho



Se tu és o espelho de uma mulher ela não te vê

Se tu és o espelho de ti mesmo és tu a única abertura para o mundo

Se tu és o espelho de um espelho de que é que falais juntos

Mas se o espelho é do tempo em lugar do espaço

O que se passa no seu interior



E disse ainda An-Nadjî naquele dia ao pequeno Zaid

Imagina só um espelho onde o tempo reflecte o tempo

Imagina a imagem nele que ele te traz

Esse espelho onde tu não te vês a ti mas a ela

Imagina o espelho-tempo habitado pela imagem-amor



Talvez tu possas compreender a dor dilacerante daquele que vê o futuro.





Fable of the Time-Mirror


The mirror said An-Nadjdî that day when the gardeners tried to beat Spring in the speed race with bulbs blossomed beforehand under the shelter of the glass oh Zaid the mirror is a motionless machine where the grain of an unexpected cereal is milled

The mirror said An-Nadjdî may be philosophy and it is then the soldier's duty to break it on the floor of mosques

The mirror if it were a man he continued ah that's simply a frightening conjecture

And of all birds doubtless the most deadly



In the mirror world what is on the right is on the left

and you turn away from the mirror as a kiss that breaks up

In the mirror world everything is a double together and nothing is but just alone

In the mirror world there is no love but one's own and in it all apparent reciprocity is false

In the mirror world everything enters except the mirror



If you are the mirror of a woman she doesn't see you

If you are the mirror of yourself you are the only opening to the world

If you are the mirror of a mirror what speak you of together

But if the mirror is of time instead of space

What happens in its interior



And An-Nadjdî continued to say that day to the child Zaid

Just imagine a mirror where time reflects time

Imagine the image in it that it brings to you

That mirror where you don't see yourself but her

Imagine the time-mirror inhabited by the love-image


Maybe you can grasp the tearing pain of the one who sees the future.



Versões portuguesa e inglesa da "Fable du Miroir-Temps" in: Ana Maria Delgado, Imagens em Blues - Images in Blues. Coimbra: Ediliber, 1989.

LA DERNIERE DEMEURE DE LOUIS ARAGON ET ELSA TRIOLET

Tuesday, January 4, 2011



Berlin


(...)

The second strange feeling concerns time. Time is for us life-time and indeed the measure of all things, subjectively and objectively. We have time - what a terrible phrase! - it slips from one's fingers, it flies away and I have no power whatsoever against this. The lines on my face - who would ever be able to read them?
The third feeling concerns place: since I came here I totally lost the sense of where I belong. Coimbra had turned into a puzzle with no place for me, and Berlin is a fiction...
Under the circumstances, no wonder that little by little I began feeling outside time and space, lighter and higher as I went down, somehow everywhere, living light years from my aerial perspective as in Velázquez Las Meninas. They mean one almost feels the air as one steps into the painting; for me, it means the perspective of the outsider, the person who's got nothing left except the spectator's part, the situation of someone who is absent, distant, absent-minded - but perceiving movement more deeply, sensing development from the future's side.
Mein liebes Kind, Dein Brief ist sehr poetisch, aber ob wir auf der Zukunftseite sitzen, das bezweifle ich sehr.

Perhaps I should apologize for having written such a long letter; but today I'm not in the mood to be formal. And you know something? People usually think that wisdom comes from grief and sorrow - they are still to discover that happiness can be so much more mysterious and productive. It's happiness that really matters - and life that really is most important and urgent.
I wish you most of all what you most wish for yourself -
Linha de Fuga - Flightline - Fluchtlinie (1995-6)
Cont. do post de 6 de Dezembro de 2010

Imagem: Diego Velázquez, Las Meninas (1656). In: http://www.artchive.com/

Saturday, January 1, 2011

Ernestine Anderson com George Shearing - Please Send Me Someone To Love

Com repetidos votos de muito bom Ano Novo para todos, aqui deixo Ernestine Anderson com George Shearing ao piano, num tema sempre actual neste primeiro dia do ano de 2011!