Friday, July 29, 2011







Espera






(...)

       Napoleão chamava a Massena “o filho querido da vitória”. Foi ele o terceiro enviado de Napoleão para conquistar Portugal, depois de Junot em 1807 e de Soult em 1809, com um grande exército para de novo invadir Portugal. Massena transpõe a nossa fronteira em Agosto de 1810, trazendo consigo a fama de grandes feitos militares, generais experientes e tropas numerosas, aguerridas, valentes, contrastando com os nossos soldados, que eram em menor número, grande parte recrutas que nunca tinham enfrentado o inimigo.

       Qual foi então o erro, o acaso, a circunstância que fez com que Massena que vinha, segundo a linguagem soberba de Napoleão, arrojar Wellington para o Oceano, tivesse de se reconhecer vencido e evacuar o país depois da derrota militar e moral?

       Dezassete dias fora o tempo calculado por Massena para a conquista de Portugal e foi para esse período de tempo que ordenou aos diversos corpos do seu exército que fizessem colheitas e se provessem de víveres. A 20 de Setembro Massena encontra Viseu deserta, vendo assim transtornados os seus planos, pois contara com a ajuda do povo português para prosseguir com facilidade nas suas operações. Estava Massena em erro. Portugal, de uma a outra extremidade do reino, logo deixara excitar o seu espírito nacional em corrente eléctrica. À medida que avançava em terras lusitanas foi Massena tomando contacto com este facto: os camponeses, bem recordados das anteriores passagens dos franceses, com a memória fresca das atrocidades, assaltos, devastações, afrontas de que as suas gentes e terras tinham sido vítimas, armaram-lhes uma guerra de guerrilha onde valia mais a imaginação, a vontade, a raiva contida e surda, a coragem, do que os recursos ou o senso comum. Eram as vozes dos filhos e parentes assassinados, os gritos angustiados das mulheres, irmãs, filhas, noivas, amantes que os atormentavam, pois muito diversos foram os vestígios deixados pelos franceses durante as Invasões Peninsulares. Era à noite que atacavam, fazendo rolar enormes pedregulhos pelas encostas abaixo e disparando tiros de caçadeira. Para eles era isso a realidade e não percebiam nada das subtilezas que associavam as Invasões Francesas ao espírito progressista da Revolução. Estes montanheses destemidos acabavam por conseguir separar as divisões francesas umas das outras e criavam uma situação de confusão por toda a linha de marcha. Não davam trégua ao inimigo odiado, não lhes deixavam um segundo de descanso.

     No dia 22 de Setembro a serra continua a encher-se de tropa seguindo as ordens de Lord Wellington. O general, por todo o tempo que ali esteve, levantava-se pelas 5 da manhã, pelas 7 saía a rever o campo e o exército e pelas 4 da tarde é que se recolhia e pelas 5 jantava.

       Era por essa hora que o Duque de Ferro, homem de acção, melhor tinha de dar provas a si mesmo da força de vontade inflexível que todos reconheciam como a característica essencial do seu carácter. Excelente estratega, com uma prodigiosa habilidade mental matemática, com um poder de visão verdadeiramente notável e com nervos de aço, o general não podia deixar de se sentir enjaulado naqueles dias, e isto apesar das duas portas. É que ele tinha feito a sua aposta no real, tinha-se visto obrigado a fazer um plano mental que não sabia se ia ou não encaixar na realidade, porque isso não dependia só dele. Dependia, sobretudo, de Massena que o inimigo contornasse o obstáculo e se lançasse em direcção ao objectivo central – a conquista de Lisboa – ou viesse direito a ele dar-lhe luta. E então aí, já o general esfregava as mãos de contente, porque conhecia as suas tropas, bem como o ânimo das tropas portuguesas, e acima de tudo conhecia-se a si próprio, sentia-se e sabia-se capaz de os guiar à vitória sobre os invasores. É claro que havia o Tratado de 1810 que abria os portos brasileiros ao comércio inglês e o que poderia parecer à primeira vista uma libertação assumia afinal aspectos de uma nova dominação. Homem conservador, Wellington tinha uma aguda sensibilidade em relação ao fenómeno nacional e aquela causa, sentia-a já como sua. Só havia, para além da angústia de não poder prever com toda a segurança a decisão de Massena, uma coisa que perturbava fortemente o general, e era isto que o fazia andar de um lado para o outro na cela, a ele, homem de paciência mil vezes posta à prova e de sangue-frio: é que as coisas têm muitas facetas e estão em movimento, por isso é tão difícil analisá-las; mas, mais difícil ainda, há sempre uma ou mais facetas escondidas, porventura as mais importantes.
 
 
       Wellington pensa na sua cela e eu acompanho-o na sua concentração, tanto que o mesmo poderia dizer da minha escrita enquanto tentativa de análise do real.




(a continuar)

Modo Vocativo (1979)

Imagem: www.dukeofwell.blogspot.com