O melhor ar da cidade
“I blow through here… and the music
goes round and round… and it comes down here” (Danny Kaye, The Five Pennies)
Não é nos parques, jardins botânicos ou bosques que
se respira o melhor ar de uma cidade, mas sim... numa sala de concertos. Talvez nem pensemos nisto, quando assistimos
a um concerto e nos deleitamos com o sublime dos sons, mas toda essa
“fantasmagoria” sonora depende, afinal, também de coisas bem concretas. Tal como quando
conversamos com alguém, e o entendimento depende de tantas coisas complexas
como falarmos o mesmo idioma, termos referências culturais comuns, estarmos num
momento mais ou menos sociável... Mesmo partilhando códigos de referência a
comunicação é difícil e “a linguagem é fonte de mal-entendidos”, como escreveu
Saint-Exupéry. Pode então desistir-se da comunicação, mas também o silêncio
pode ser eloquente, ou de oiro. Seja como for, quando comunicamos oralmente não
são só factores linguísticos e culturais, afectivos ou emocionais que estão em
questão na comunicação, mas antes disso todo um processo físico de transmissão
do som, sem o qual nem valeria a pena falar de toda a complexidade interpessoal
dos processos de comunicação. Na verdade, o som em si nem existe como tal, são
antes as ondas sonoras que transportam aos nossos ouvidos vibrações do ar
que são captadas e amplificadas 180 vezes pelo nosso aparelho auditivo, até
a informação chegar ao cérebro.
Podia ser aqui ou noutra cidade da Alemanha ou do
mundo, mas imaginemos que estamos a fazer uma visita guiada ao Gewandhaus em
Leipzig. Não é pela sala grande que começamos, uma sala monumental de 1.900
lugares, a que preside um majestoso órgão de 6.638 tubos, encimado pela máxima
que guia a orquestra, uma citação de Séneca, “Res severa (est) verum gaudium”,
“A alegria autêntica é uma coisa séria”. Juntamente com esta imagem
emblemática, uma outra se nos grava na memória, mais minimalista e pósmoderna, e
é por aí que começa uma visita guiada ao Gewandhaus: a dos filtros de ar nas
caves do edifício. São compartimentos repletos de maquinaria onde o ar exterior
é cuidadosamente filtrado. Os filtros estão muito sujos, o ar atmosférico está
muito poluído, apesar dos inúmeros e vastos espaços verdes que a cidade possui,
quer no centro, quer em seu redor. Há, no quarto fechado onde estão os filtros,
um filtro novo no chão para se poder comparar a sua cor imaculadamente branca
com o castanho acinzentado dos filtros que estão em funcionamento. O ar tem de
ser filtrado para evitar infiltrações de bactérias no circuito de ar
condicionado, obtendo-se por este processo igualmente uma melhor qualidade
sonora. Os instrumentos musicais, nomeadamente os pianos, são zelosamente
guardados num compartimento fechado onde o ar é rigorosamente medido e
regulado, e daí sobem num elevador directamente para a sala de concertos. Os
concertistas preferem os pianos de marca Steinway, e são sensíveis à perda de
qualidade sonora dos instrumentos após cinco anos de uso. Assim, os
instrumentos com mais de cinco anos são vendidos em leilão. A acústica da sala
de concertos é outra das grandes preocupações de quem projecta. Embora três
engenheiros de acústica tenham trabalhado no projecto da sala grande de
concertos do Gewandhaus, só se pode saber o resultado no final, e afirma quem
sabe: a acústica de uma sala de concertos é uma pura questão de sorte! A
propósito, para quem ainda aqui não esteve, a acústica da sala grande de
concertos do terceiro Gewandhaus de Leipzig, concluído em 1981, é perfeita.
Ana Maria Delgado
Outubro de 2009
Nota: recuperamos hoje neste blogue um texto que publiquei como colaboradora da PNET Literatura em 2009. Em baixo fica ainda a recordação do momento musical evocado em epígrafe ao texto, do filme musical The Five Pennies (1959), com Danny Kaye e Susan Gordon: