Espera
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Os franceses, mais arreliados do que propriamente afectados no físico ou no moral, não perdoavam a estes pequenos agentes da História: torturavam-nos até à exaustão, assassinavam-nos barbaramente. Estes portugueses não deixam de ser, à sua maneira, sujeito e objecto da História. A História não é só o Grande Mecanismo que tritura seres humanos, a escada que todos sobem para encontrar no cimo, ao mesmo tempo que a glória efémera, o abismo. A História não é a Roda da Fortuna que tão depressa eleva os homens como os lança e esmaga num círculo de absurdo. Não. A História não é isso, porque ela é escrita – com sangue e sofrimento e erros e coragem e inteligência – pelos homens. Embora muitas vezes pareça absurda. Não é a História que é absurda. É ao próprio ser humano que devemos ir procurar as contradições – a ele, na sua interacção com os outros homens, com a natureza, e consigo mesmo.
Massena avança e Wellington, que tem enviados seus para lhe espiarem os movimentos, vê o inimigo aproximar-se da ratoeira e cada vez se sente mais seguro e mais receoso. Nos dias 23 e 24 ouve-se já muito fogo nas localidades próximas, anunciando a vizinhança do inimigo. Os oficiais ingleses, nomeadamente o general, observam da Porta de Sula o espectáculo que dali se divisa – muitas casas a arder – e no rosto lê-se-lhe grande tristeza. O general não podia fazer nada, não podia acudir-lhes, a única maneira de lhes acudir era estar ali quieto, a preparar-se para a acção – mas só quando fosse a altura. No dia 24 Lord Wellington mandou abrir a Porta da Rainha, que estava tapada com pedra, por estar mais próxima da estrada. Com outras duas que, por motivos tácticos, mandou abrir, a mata ganhou mais três portas.
No dia 25 todo o exército francês estava em movimento e veio acampar em Tondela e cercanias. Entre 25 e 26 estão muito próximos das tropas aliadas, nas vizinhanças de Moura e Sula. Os aliados põem o seu exército em linha por todo o cume da serra, da qual a mata é o centro. Fazem-se baterias por todos os montes. Os regimentos que ainda estavam pelos pinhais de Moura e Sula recuaram, por estarem muito próximos do inimigo.
Participam então a Massena que os aliados se opõem à passagem da montanha com forças consideráveis. Massena pergunta ao general Pamplona se julga que os aliados vão oferecer batalha, ao que este responde afirmativamente. Diz então Massena, convencidíssimo e em tom de oráculo: “Eu não me persuado que lord Wellington se arrisque a perder a sua reputação; mas se o faz, je le tiens; demain nous finirons la conquête du Portugal, et en peu de jours je noyerai le léopard.”
Antes de resolver atacar a posição, Massena convoca no dia 26 o marechal Ney, o general Regnier e o general Junot para os ouvir e conferenciar com eles acerca do que conviria fazer. Ney opinou que se não atacasse a posição no dia seguinte – bem calculava ele que durante a noite se reuniria todo o exército anglo-luso e que no dia seguinte teriam os franceses de arcar com todas as forças aliadas. Regnier e Junot seguiram o parecer de Ney.
Disse então Massena:
- Eh bien, que faut-il faire ?
- Prendre position à Viseo, respondeu Ney, ou bien retourner sur nos pas à Almeida pour contenir l’Espagne, et écrire à Paris que nous n’avons pas assez de forces pour faire la conquête du Portugal.
Massena, sob o signo da hybris mais uma vez, novamente julgou mal a situação; pensou que o fim de Ney era desviá-lo do combate para o privar da glória de conquistar o reino e torná-lo assim mal visto aos olhos de Napoleão. A resposta de Ney não casava com a sua habitual intrepidez e era até, bem vistas as coisas, inadmissível. Mas a desconfiança de Massena em relação às supostas razões de Ney levaram-no, por espírito de contradição, a desprezar o que teria sido acertado: tornear a posição, evitar o obstáculo. Ordenou então que no dia seguinte se atacasse a serra, dizendo: Je ne crois là que l’arrière-garde ennemie; si toujours l’armée s’y trouve, tant mieux, le bonheur de l’enfant chéri de la victoire ne l’abbandonnera pas !
Do que Massena se esqueceu foi de que os riscos não se podem correr às cegas, tem que se olhar o real de frente e tentar captar todas as suas potencialidades.
Somos sujeito e objecto da História.
Na sua cela das duas portas, Wellington marcha de um lado para o outro.
(a continuar)
Modo Vocativo (1979)
Imagem: Palace Hotel do Buçaco, azulejos do hall do hotel, "Lord Wellington", in: